domingo, 9 de março de 2025

Cearense de Acopiara, Dayse Barreto assina direção de arte de filme premiado em Berlim: ‘O cinema brasileiro nunca esteve em baixa’

Mais de 10 anos separam a estreia da diretora de arte cearense Dayse Barreto em longas-metragens — marcada pelo filme cearense “De Punhos Cerrados”— do trabalho em “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro, que conquistou o Urso de Prata de Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim em fevereiro.

Entre o início da carreira e o recente reconhecimento, a profissional nascida no município de Acopiara, a cerca de 352 km de Fortaleza, foi testemunha e atuante nos percursos dos cinemas feitos no Ceará e no Brasil: dos primeiros impactos do fortalecimento das políticas públicas ao enfraquecimento da cultura em âmbito federal, chegando a um novo momento de força e reconhecimentos nacionais e internacionais do audiovisual.

Fruto de formações em audiovisual

“Eu estudei, me formei e me profissionalizei no início do período de elaboração e consolidação de políticas públicas voltadas para o audiovisual após muitos anos de incertezas, com a ideia da retomada e as criações das leis de incentivo”, contextualiza.

Dayse se formou pela segunda turma de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor) e acumulou experiências em cursos de espaços importantes de Fortaleza, como a Escola Pública de Audiovisual Vila das Artes, o Instituto Dragão do Mar (IDM) e a Casa Amarela Eusélio Oliveira (CAEO) — além de formações como técnica cinematográfica pela Academia Internacional de Cinema e em Desenho Técnico pelo Senac, ambas em São Paulo.

Fruto dos anos iniciais de construção das formações em audiovisual no contexto da capital cearense, a diretora de arte lembra que as primeiras experiências na função foram em filmes realizados em cadeiras do curso na Unifor — caso de “Matryoshka”, de Salomão Santana, onde atuou também como co-roteirista e atriz — e também em trocas com realizadores de outros cursos, como Leonardo Mouramateus, Samuel Brasileiro, Victor Costa Lopes e Luciana Vieira, vindos da UFC e da Vila das Artes.

“Porém, como as produções eram poucas e limitadas, antes de trabalhar no cinema, trabalhei em diversas funções que, no fim, alimentaram o meu repertório pessoal”, partilha, citando experiências no acervo o Museu da Imagem e do Som do Ceará, aulas de audiovisual em escolas públicas municipais e produção de mostras independentes.

Do primeiro longa ao filme premiado em Berlim

A junção das formações, dos primeiros trabalhos universitários como diretora de arte e das outras funções forjaram o caminho de Dayse até “Com os Punhos Cerrados” (2014), da podutora e coletivo Alumbramento, no qual assinou a direção de arte com Thaís de Campos. 

"Nesse período, foi também quando surgiu a Alumbramento, que impulsionou não só o cinema cearense e nacional a outro patamar, como também a ampliação das possibilidades de se fazer e pensar cinema”, rememora.

Ao longo dos anos seguintes, Dayse compôs as equipes de direção de arte de diversos projetos cearenses e brasileiros, como "Praia do Futuro" (2014), "A Noite Amarela" (2019), "Cabeça de Nêgo" (2020), "A Flor do Buriti" (2023) e "Greice" (2024), por exemplo, até chegar em “O Último Azul”.

Dirigido pelo pernambucano Gabriel Mascaro, o filme se passa na Amazônia e acompanha Teresa (Denise Weinberg), uma mulher de 77 anos que vive num Brasil quase distópico onde idosos são compulsoriamente exilados após certa idade. Antes desse destino, ela busca realizar um último desejo.

Para a obra — descrita por Dayse como “um filme que te envolve na alegria desafiadora da libertação de uma mulher idosa que se recusa a se curvar a um governo autoritário etarista” —, o trabalho incluiu meses de pesquisa nos municípios de Manaus, Manacapuru e Novo Airão, no Amazonas.

Desafios logísticos e orçamentários — “tínhamos muitos personagens, mais de 35 locações e nos deslocávamos de carro e de barco (muitas vezes com os dois)”, elenca — foram contornados, destaca Dayse, pelo “apoio e coragem” da equipe e também pela abertura dos moradores.

“Muitas pessoas abriram os seus lares e nos alugaram móveis de família, objetos de valores inestimáveis, compartilharam uma parte de sua história. Ensinamos e aprendemos o valor das coisas quando estamos dispostos a exercer a principal parte de fazer um trabalho coletivo”, destaca.

Cinema brasileiro "de cabeça erguida"

A seleção de “O Último Azul” para a mostra competitiva principal do Festival de Berlim já seria o “maior prêmio”, mas a recepção do longa foi superior às expectativas e ele acabou vencedor do Urso de Prata de Grande Prêmio do Júri, equivalente ao segundo lugar do evento. 

A obra ainda foi premiada como o melhor filme do evento por dois júris paralelos, o Ecumênico e o de Leitores do jornal Berliner Morgenpost. “É realmente emocionante enxergar onde estamos agora, mesmo após o desassossego cotidiano e os horrores do governo de extrema-direita que realizaram um verdadeiro desmonte cultural no nosso país”, aponta a cearense.

Conforme Dayse, apesar do cenário referido, “o cinema brasileiro nunca esteve em baixa”. “Todos os anos, há filmes brasileiros premiados nos festivais de Cannes, Berlim, Rotterdam, Veneza, especialmente diretores nordestinos. Ainda em meio ao caos, nos mantivemos de cabeça erguida”, ressalta.

Fator determinante para tanto, aponta a cearense, está na “restabilização de uma política cultural comprometida” no atual governo federal. O fato, segue ela, reforça a visão da arte como “ferramenta mobilizadora não só de política e cultura, mas de economia social”.

Conquistas e demandas

Entre as melhorias que observa no audiovisual desde que começou a atuar na área, Dayse, reforça “as existências e práticas das políticas públicas mais efetivas nos âmbitos municipais, estaduais e federais” e destaca, ainda, “a consolidação das faculdades e escolas públicas de cinema”.

Já sobre questões que seguem em aberto, Dayse cita o processo ainda em curso de restabelecimento após o período “de censura e sucateamento de profissionais e patrimônios culturais” do governo federal anterior e o “grande impacto dos streamings na nossa produção e no nosso modo de trabalho”.

“É preciso entender que sem uma política interna de proteção para as produções nacionais, corremos o risco de vermos a nossa cultura e nossos saberes sendo explorados por empresas estrangeiras e sem oferecer condições dignas a nós, profissionais do setor”, avalia.

Reconhecimentos nacionais e internacionais

As conquistas de “O Último Azul” em Berlim antecederam outro reconhecimento internacional relevante para a história do audiovisual brasileiro: o primeiro Oscar do País, na categoria de Melhor Filme Internacional, para “Ainda Estou Aqui”. 

Junto dessas e outras vitórias em instâncias globais — como a primeira seleção de um filme para o Festival de Cannes com “Motel Destino”, por exemplo —, a resposta da população parece ser de maior atenção às produções do País.

“O cinema não existe sem público”, atesta a cearense, que lembra dos declínios de bilheteria no País que afetaram não somente o cinema brasileiro, mas também megaproduções de Hollywood. As conquistas que obras nacionais têm angariado, no entanto, fortalecem a produção.

Diário do Nordeste

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