quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Firmada parceria no centenário do maestro Eleazar de Carvalho


Os olhos muito pequenos e esverdeados de dona Sônia Muniz repuxam de felicidade nos cantinhos e ficam ainda menores quando ela recorda do maestro. O homem com a qual ela esteve casada por 24 anos, foi companheiro da vida inteira. Aos 12 anos, ela conheceu Eleazar de Carvalho, que já era o maestro reconhecido no mundo inteiro, e ela nutria por ele uma admiração sem tamanho. Dona Sônia esteve com o maestro até o fim da vida, quando em 1996, aos 84, ele se foi, e foi ela quem levou a frente seus projetos e a Fundação Eleazar de Carvalho.

Em 2012, o cearense de Iguatu, que muito jovem ganhou o mundo pela música, completaria 100 anos. A Fundação Eleazar de Carvalho, a Prefeitura de Iguatu e a Fundação Demócrito Rocha firmaram parceria para entre junho e outubro realizarem uma série de atividades em comemoração ao centenário do maestro. Em Fortaleza para acertar detalhes das celebrações, dona Sônia conversou com O POVO sobre o maestro.

O POVO – Como as vidas da senhora e a do maestro se cruzaram?
Sônia Muniz – Foi a música. Eu sou musicista e toquei com ele com 14 anos. A primeira vez que eu falei com o Eleazar foi em um camarim, ele fazia os concertos da Juventude Musical Brasileira e ia todos os meses a São Paulo. E uma vez ele me convidou para tocar para ele, e gostou, imagino que sim, porque ele marcou um concerto no dia 27 de outubro 1956. Foi uma glória pra mim, porque eu fui solista da Orquestra Sinfônica Brasileira. O maestro me disse: “Aqui está a primeira chave, abra as outras portas”. Eu tive várias oportunidades de tocar com Eleazar, além do mais, nós éramos vizinhos. Quando eu tinha 20 anos, fui estudar em Viena e no aeroporto de Roma, a minha mala tinha arrebentado. Ele tirou uma correia, amarrou minha mala, e disse “Pela sua coragem de ir estudar sozinha em Viena, eu vou dar o meu metrônomo de lembrança”. Depois, em 1972, quando ele foi a São Paulo, chamado pelo secretário da Cultura, o mal dele foi ter passado na casa dos meus pais. Eu estava passando na casa da mamãe, não sabia que ele estava lá. Aí entrei e disse: “Maestro, que prazer, o que você está fazendo aqui?”. Ele disse: “Eu vim trazer a parte didática do festival de Tanglewood para Campos do Jordão”. Eu disse: “Maestro, o senhor vai chegar na secretaria de Cultura e vai ficar desesperado, porque ninguém sabe nada de música. Eu sou fiscal do ensino artístico lá. Se o senhor quiser meus préstimos. Estou tão encantada que o senhor está aqui, que eu quero ajudar de alguma forma”. No dia seguinte ele foi à secretaria, me liga e diz “Venha imediatamente”. Aí eu fui, e ajudei tanto no Festival, que no último dia do Festival ele me pediu em casamento.
OP – A senhora sabe contar como começou a relação do maestro com a música?
Sônia Muniz – Ele dizia que começou a tocar por gulodice. Porque o pai, ele um menino muito inquieto, o mandou para estudar na Marinha, num tempo que a Marinha era uma escola correcional. E aí ele observou uma coisa: “Eu via que a mesa dos músicos, dos que tocavam na banda, era mais farta, tinha mais coisa”. Daí ele decidiu pedir para tocar e foi tocar tuba. Depois que ele saiu da Marinha, foi tocar no Teatro Municipal como músico, depois ele foi co-fundador da Orquestra Sinfônica Brasileira. Depois foi chamado para ser o diretor musical do Cassino da Urca, que estava abrindo. O salário era irrecusável. Ele foi e guardou o dinheiro todo mês, nunca jogou uma roleta e ele mesmo custeou a viagem dele aos Estados Unidos. Quando chegou lá o Eugene Ormandy (regente da Philadelphia Symphony Orchestra) disse que ele tinha de começar do Arizona, e deu uma esfriada nele. Um outro empresário ofereceu que se pusesse ele no Carnegie Hall vestido de índio, ele poderia reger a orquestra. Ele falou “Não, essa patuscada toda não é comigo”. Foi quando ele viu em Tanglewood que o Sergei Koussewitzky iria dar um curso de regência, mas que já tinha acontecido a seleção. Ele foi para lá, mesmo com as inscrições encerradas. Quando chegou ele ligou para o Copland (pianista que tinha encontrado com Eleazar no Rio de Janeiro) e disse “Eu sou Eleazar de Carvalho e trago uma mensagem do governo brasileiro”. Então, entrou e disse para o Copland que precisava de cinco minutos do Sergei. Sergei o recebeu e perguntou qual é a mensagem. Ele disse: “Maestro, a mensagem é verbal. O meu governo manda vir aqui dizer pro senhor me dar cinco minutos amanhã, se o senhor vir que eu não tenho talento, eu volto pro meu país e vou viver da caça e da pesca”. Sergei ficou tão assim, que resolveu dar o cinco minutos para ele. A grande sorte dele é que ele deu A grande valsa Russa, de Rimsky-Korsakov, que o Eleazar já tinha regido no Rio de Janeiro, ele sabia de memória. E o Sergei disse para o Copland quando ele acabou de reger: “Coloque o nome dele na lista”. Ele ficou 17 anos lá. Foi aluno, e com a morte do Koussewitzky ele ficou como diretor. E certa vez ele perguntou: “O que o senhor achou quando eu regi?”. E o Koussewitzky respondeu: “Estava tudo errado, mas eu vi uma grande talento”. (risos)
OP – Como ficou a relação dele com Iguatu, com o Ceará?
Sônia Muniz – Com o Ceará ele sempre manteve os laços pelos amigos que sempre cultivou aqui. Com Iguatu era um pouco mais difícil porque ele viajava muito, era mais complicado pra ele ir até lá. Ele nasceu lá, mas muito jovem veio para Fortaleza, o pai era militar e todos os irmãos nasceram aqui, só ele nasceu em Iguatu. Mas o que sempre existiu foi um orgulho muito grande dele de ser cearense, de ser de Iguatu. Ele tinha um carinho enorme por isso aqui. 
OP – A senhora pode me contar um pouco como foram os últimos tempo do maestro?
Sônia Muniz – Foi um ano muito difícil aquele (1996). A gente estava fazendo o Festival em Itu, e ele no hospital eu ia e voltava todos os dias. No dia do encerramento eu levei ele de cadeira rodas e foi uma choradeira geral. Meses antes eu tinha perdido meu irmão, depois o Eleazar, e no ano seguinte meu pai. No último dia, me disse angustiado: “Como vão ficar meus meninos (os 100 músicos que a cada festival ele levava do Ceará para São Paulo)? Eu vou morrer sem ter cumprido minha missão”. Eu disse: “Eu vou levar a frente tudo isso, não vou deixar seus meninos”. (com a voz embargada). Ele pareceu mais leve. Na saída, da sala tinha umas equipes de TV e rádio, e me perguntaram o que eu tinha para falar. Eu falei: “A morte é linda”. Dois anos depois, encontrei com um ator e pedi para tirar foto com ele. Quando ele soube de quem eu era viúva ele me abraçou e contou que tinha me escutado no rádio e que eu tinha mudado a vida dele.
OP – Ele morreu com 84 anos. Ele chegou a programar alguma coisa para o centenário dele?
Sônia Muniz – Não. Ele não programou, não. Apesar de ele sempre acreditar que iria durar muito. Ele contava uma anedota de que uma cigana na Europa, veja só, disse a ele que ele viveria muito. (risos) Não aconteceu isso, não, era uma brincadeira dele. Verdade ou não, o certo é que se você for ver 84 anos é um bom tempo.

Por quê

ENTENDA A NOTÍCIA

A exemplo de centenários de outros cearenses ilustres, como Rachel de Queiroz e Patativa do Assaré, a Fundação Demócrito Rocha celebrará entre junho e outubro deste ano os 100 anos do maestro Eleazar de Carvalho.

Domitila Andrade
domitilaandrade@opovo.com.br

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