Os olhos muito pequenos e esverdeados de dona Sônia Muniz repuxam
de felicidade nos cantinhos e ficam ainda menores quando ela recorda do
maestro. O homem com a qual ela esteve casada por 24 anos, foi companheiro da
vida inteira. Aos 12 anos, ela conheceu Eleazar de Carvalho, que já era o
maestro reconhecido no mundo inteiro, e ela nutria por ele uma admiração sem
tamanho. Dona Sônia esteve com o maestro até o fim da vida, quando em 1996, aos
84, ele se foi, e foi ela quem levou a frente seus projetos e a Fundação
Eleazar de Carvalho.
Em 2012, o cearense de Iguatu, que muito jovem ganhou o mundo pela
música, completaria 100 anos. A Fundação Eleazar de Carvalho, a Prefeitura de
Iguatu e a Fundação Demócrito Rocha firmaram parceria para entre junho e outubro
realizarem uma série de atividades em comemoração ao centenário do maestro. Em
Fortaleza para acertar detalhes das celebrações, dona Sônia conversou
com O POVO sobre o maestro.
O POVO – Como as vidas da
senhora e a do maestro se cruzaram?
Sônia Muniz – Foi a música. Eu sou musicista e toquei com ele com 14
anos. A primeira vez que eu falei com o Eleazar foi em um camarim, ele fazia os
concertos da Juventude Musical Brasileira e ia todos os meses a São Paulo. E
uma vez ele me convidou para tocar para ele, e gostou, imagino que sim, porque
ele marcou um concerto no dia 27 de outubro 1956. Foi uma glória pra mim,
porque eu fui solista da Orquestra Sinfônica Brasileira. O maestro me disse:
“Aqui está a primeira chave, abra as outras portas”. Eu tive várias
oportunidades de tocar com Eleazar, além do mais, nós éramos vizinhos. Quando
eu tinha 20 anos, fui estudar em Viena e no aeroporto de Roma, a minha mala
tinha arrebentado. Ele tirou uma correia, amarrou minha mala, e disse “Pela sua
coragem de ir estudar sozinha em Viena, eu vou dar o meu metrônomo de
lembrança”. Depois, em 1972, quando ele foi a São Paulo, chamado pelo
secretário da Cultura, o mal dele foi ter passado na casa dos meus pais. Eu
estava passando na casa da mamãe, não sabia que ele estava lá. Aí entrei e
disse: “Maestro, que prazer, o que você está fazendo aqui?”. Ele disse: “Eu vim
trazer a parte didática do festival de Tanglewood para Campos do Jordão”. Eu
disse: “Maestro, o senhor vai chegar na secretaria de Cultura e vai ficar desesperado,
porque ninguém sabe nada de música. Eu sou fiscal do ensino artístico lá. Se o
senhor quiser meus préstimos. Estou tão encantada que o senhor está aqui, que
eu quero ajudar de alguma forma”. No dia seguinte ele foi à secretaria, me liga
e diz “Venha imediatamente”. Aí eu fui, e ajudei tanto no Festival, que no
último dia do Festival ele me pediu em casamento.
OP – A senhora sabe contar como começou a
relação do maestro com a música?
Sônia Muniz – Ele dizia que começou a tocar por gulodice. Porque o pai,
ele um menino muito inquieto, o mandou para estudar na Marinha, num tempo que a
Marinha era uma escola correcional. E aí ele observou uma coisa: “Eu via que a
mesa dos músicos, dos que tocavam na banda, era mais farta, tinha mais coisa”.
Daí ele decidiu pedir para tocar e foi tocar tuba. Depois que ele saiu da
Marinha, foi tocar no Teatro Municipal como músico, depois ele foi co-fundador
da Orquestra Sinfônica Brasileira. Depois foi chamado para ser o diretor
musical do Cassino da Urca, que estava abrindo. O salário era irrecusável. Ele
foi e guardou o dinheiro todo mês, nunca jogou uma roleta e ele mesmo custeou a
viagem dele aos Estados Unidos. Quando chegou lá o Eugene Ormandy (regente da
Philadelphia Symphony Orchestra) disse que ele tinha de começar do Arizona, e
deu uma esfriada nele. Um outro empresário ofereceu que se pusesse ele no
Carnegie Hall vestido de índio, ele poderia reger a orquestra. Ele falou “Não,
essa patuscada toda não é comigo”. Foi quando ele viu em Tanglewood que o
Sergei Koussewitzky iria dar um curso de regência, mas que já tinha acontecido
a seleção. Ele foi para lá, mesmo com as inscrições encerradas. Quando chegou
ele ligou para o Copland (pianista que tinha encontrado com Eleazar no Rio de
Janeiro) e disse “Eu sou Eleazar de Carvalho e trago uma mensagem do governo
brasileiro”. Então, entrou e disse para o Copland que precisava de cinco
minutos do Sergei. Sergei o recebeu e perguntou qual é a mensagem. Ele disse:
“Maestro, a mensagem é verbal. O meu governo manda vir aqui dizer pro senhor me
dar cinco minutos amanhã, se o senhor vir que eu não tenho talento, eu volto
pro meu país e vou viver da caça e da pesca”. Sergei ficou tão assim, que
resolveu dar o cinco minutos para ele. A grande sorte dele é que ele deu A
grande valsa Russa, de Rimsky-Korsakov, que o Eleazar já tinha regido no Rio de
Janeiro, ele sabia de memória. E o Sergei disse para o Copland quando ele
acabou de reger: “Coloque o nome dele na lista”. Ele ficou 17 anos lá. Foi
aluno, e com a morte do Koussewitzky ele ficou como diretor. E certa vez ele
perguntou: “O que o senhor achou quando eu regi?”. E o Koussewitzky respondeu:
“Estava tudo errado, mas eu vi uma grande talento”. (risos)
OP – Como ficou a relação dele com Iguatu,
com o Ceará?
Sônia Muniz – Com o Ceará ele sempre manteve os laços pelos amigos que
sempre cultivou aqui. Com Iguatu era um pouco mais difícil porque ele viajava
muito, era mais complicado pra ele ir até lá. Ele nasceu lá, mas muito jovem
veio para Fortaleza, o pai era militar e todos os irmãos nasceram aqui, só ele
nasceu em Iguatu. Mas
o que sempre existiu foi um orgulho muito grande dele de ser cearense, de ser
de Iguatu. Ele tinha um carinho enorme por isso aqui.
OP – A senhora pode me contar um pouco como
foram os últimos tempo do maestro?
Sônia Muniz – Foi um ano muito difícil aquele (1996). A gente estava
fazendo o Festival em Itu, e ele no hospital eu ia e voltava todos os dias. No
dia do encerramento eu levei ele de cadeira rodas e foi uma choradeira geral.
Meses antes eu tinha perdido meu irmão, depois o Eleazar, e no ano seguinte meu
pai. No último dia, me disse angustiado: “Como vão ficar meus meninos (os 100
músicos que a cada festival ele levava do Ceará para São Paulo)? Eu vou morrer
sem ter cumprido minha missão”. Eu disse: “Eu vou levar a frente tudo isso, não
vou deixar seus meninos”. (com a voz embargada). Ele pareceu mais leve. Na
saída, da sala tinha umas equipes de TV e rádio, e me perguntaram o que eu
tinha para falar. Eu falei: “A morte é linda”. Dois anos depois, encontrei com
um ator e pedi para tirar foto com ele. Quando ele soube de quem eu era viúva
ele me abraçou e contou que tinha me escutado no rádio e que eu tinha mudado a
vida dele.
OP – Ele morreu com 84 anos. Ele chegou a
programar alguma coisa para o centenário dele?
Sônia Muniz –
Não. Ele não programou, não. Apesar de ele sempre acreditar que iria durar
muito. Ele contava uma anedota de que uma cigana na Europa, veja só, disse a
ele que ele viveria muito. (risos) Não aconteceu isso, não, era uma brincadeira
dele. Verdade ou não, o certo é que se você for ver 84 anos é um bom tempo.
Por quê
ENTENDA A NOTÍCIA
A exemplo de centenários de outros cearenses ilustres, como Rachel
de Queiroz e Patativa do Assaré, a Fundação Demócrito Rocha celebrará entre junho
e outubro deste ano os 100 anos do maestro Eleazar de Carvalho.
Domitila Andrade
domitilaandrade@opovo.com.br
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