sexta-feira, 16 de novembro de 2018

SSPDS diz que não houve mortes por homofobia em 2017

“A imundiça (sic) tá de calcinha e tudo!”. “Sobe nisso aí, seu viado (sic) feio!”. “Tu tá embaçando aqui a favela, baitola”. Os gritos são ouvidos no vídeo que circulou nas redes sociais, em março do ano passado, exibindo as cenas do brutal assassinato de Dandara dos Santos, 42. As imagens do espancamento e tortura realizada por 12 pessoas, no Bom Jardim, em Fortaleza, repercutiram internacionalmente, tornando a travesti um símbolo dos crimes de ódio cometidos no Brasil.

Para a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) do Ceará, entretanto, Dandara foi morta por motivos alheios à condição de travesti. “Nos procedimentos formalizados nos inquéritos policiais da Capital e Região Metropolitana, no ano de 2017 não houve a identificação de nenhum crime ligado à homofobia”, garante a delegada Adriana Arruda, coordenadora da Comissão de Estudo do Perfil das Vítimas de Crimes Violentos Letais e Intencionais da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

No mesmo ano em que mataram Dandara, em que arremessaram o corpo da travesti Hérica Izidoro de uma passarela na avenida José Bastos, no bairro Damas, e em que mataram um gay, no bairro Antônio Bezerra, com 53 perfurações no corpo por objeto contundente, a SSPDS afirma que não houve nenhum registro sequer de assassinato motivado por homofobia ou transfobia entre as 1.916 mortes ocorridas na Capital.

“Não podemos considerar um homicídio simples, de violência urbana comum, quando a vítima é xingada com palavras de ordem LGBTfóbica. Quando o assassino, no momento dos disparos, diz ‘chegou tua hora, viado’. Quando a vítima recebe um determinado número de tiros em suas genitálias. Quando a vítima de um latrocínio recebe um emprego de violência desproporcional. Não é comum que uma pessoa tenha em média 17 perfurações por arma branca.

Não podem ter desassociados do contexto de ódio casos em que a vítima recebeu mais de seis perfurações por bala”, argumenta Tel Cândido.

Coordenador do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, entidade ligada à Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Cândido é um dos responsáveis pelo Levantamento do LGBTcídio em Fortaleza e no Estado do Ceará, desenvolvido pela entidade, que aponta para pelo menos 30 crimes letais com possível incidência homofóbica no Estado em 2017, incluindo a morte de Dandara.

O número é confirmado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil e referência internacional para a luta LGBT. Ao lado do 0% indicados pela SSPDS, as três dezenas impressionam.

“A gente precisa olhar esses casos e entender que, por mais que dialoguem com outras dimensões da violência, por mais que todas as populações estejam suscetíveis à violência, a forma como a população LGBT tem sido vitimada e dizimada tem singularidades, tem a dimensão do ódio, do preconceito, da discriminação, e só pode ser entendida se a gente pensar de um modo mais amplo os contextos de vida que determinam lugares de desigualdade entre quem é LGBT e quem não é”, explica Tel.

Confrontada com os dados do Centro Janaína Dutra, a delegada Adriana Arruda explica que o trabalho da comissão que coordena é “puramente técnico” e se concentra nas informações concretas colocadas em inquéritos policiais.

“Dentro dos inquéritos, analisamos tudo, seguimos a linha do delegado de polícia. Precisamos ter informações com base técnica, com procedência. Se a gente tratar que ‘o delegado não concluiu que foi crime homofóbico, mas eu entendo que’, a gente estaria induzindo o secretário (André Costa) ao erro.

Estaria colocando minha opinião dentro daquilo que deveria ser puramente técnico. Nós não trabalhamos com suposições, nem com achismos, mas com dados concretos dos procedimentos”, explica ela sobre a estatística zerada.

A Comissão de Estudos do Perfil das Vítimas, que tem caráter de grupo de estudos, foi criada para analisar o aumento expressivo número de homicídios em 2017. O objetivo é traçar o perfil das vítimas e identificar a motivação os crimes. “Cada caso é analisado individualmente pela equipe. Quando não encontramos todas as respostas dentro do procedimento, quando falta alguma informação, vamos a campo e procuramos familiares, amigos da vítima”, esclarece a delegada. De acordo com a Comissão, 28% dos 1.916 crimes registrados em Fortaleza no ano passado tiveram ligação com disputas entre grupos criminosos.

O 0% que aparece no relatório ao lado da motivação “homofobia” impressiona quem convive com a realidade de agressões e violações contra a população LGBT. No Brasil, pelo menos 387 homossexuais foram assassinados em 2017 e outros 58 se suicidaram, totalizando 445 casos de morte com possível motivação homotransfóbica. O número representa um aumento de 30% em relação às estatísticas de 2016, quando foram registrados 343 casos. Nesse cenário, a população mais fragilizada é a de travestis e transexuais – no Ceará, 67% das vítimas pertencem a esse grupo.

Em Fortaleza, o Centro Janaína Dutra realizou 677 atendimentos em 2017. Foram acompanhados 177 casos de violação e/ou omissão de direitos da população LGBT, sobretudo dos travestis ou transexuais.

“Não é à toa. Elas representam o perfil identitário, entre a população LGBT, que é mais vulnerável aos mecanismos de violência. Quando você vai olhar o perfil dessas meninas, a maior parte estava se prostituindo. É uma população que não tem acesso à educação, ao mercado de trabalho, que não consegue concluir o ensino médio por conta do bullying, que não consegue apoio da família no momento da transição e que não é absolvido pelo mercado formal de trabalho. Qual o lugar da travesti na sociedade hoje?”, questiona Tel.

Em 2017, foram registrados 1.979 crimes violentos letais intencionais (CVLIs) em Fortaleza, conforme a SSPDS. Destes, 1.916 foram analisados pela comissão, por se tratarem de casos de homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. A Secretaria esclareceu que ficaram de fora 63 casos, sendo 29 ocorrências de latrocínio. Noutros 34 inquéritos, não havia informações suficientes para apontar a motivação do crime.

Já as ocorrências contabilizadas pelo Centro Janaína Dutra foram contabilizadas por atendimento presencial ou pelo Disque-100, e por notificações do hospital IJF, via formulário do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). Também foram utilizados dados do monitoramento de sites e grupos virtuais da sociedade civil LGBT organizada e de grupos de pesquisa.

Notícias veiculadas na imprensa, informações obtidas durante a realização de visitas aos familiares das vítimas e contatos telefônicos com as delegacias de Polícia Civil, além de consulta a processos judiciais e dados da própria SSPDS, também foram consideradas.

Conforme o estudo, foram incluídos os crimes considerados como não tendo motivação LGBTfóbica eventual e nitidamente enunciada pelas fontes, além daqueles que não tiveram as circunstâncias ou motivações totalmente elucidados pela Polícia Civil.

Os pesquisadores consideram que, apesar de as investigações iniciais apontarem para outras formas de violência urbana, os crimes não podem ser “dissociados contextos de ódio”, dada as “características de extrema crueldade e as nuances simbólicas que apresentaram”, sobretudo em relação ao contextos de vulnerabilidade social decorrentes do panorama de preconceito e discriminação direcionados historicamente à população LGBT.

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