segunda-feira, 23 de julho de 2018

Chacina das Cajazeiras – Por engano, despachante foi morto no dia seguinte ao ataque

A tragédia das histórias entrelaçadas à Chacina das Cajazeiras não cabe em uma única reportagem ou coluna. Cada uma delas, contudo, merece ser contada. Algumas, em razão da gravidade dos fatos.

Outras, sobretudo, por justiça à memória das vítimas. Por respeito às suas famílias. Por tudo o que não foi dito, ensejando suspeições maliciosas.

No cenário de uma Fortaleza que se acostumou a não se apavorar com as mortes que ocorrem longe da Aldeota e suas adjacências, reputações são maculadas da noite para o dia, sob o argumento do possível “envolvimento com o crime”. Regra geral, a suspeição serve para justificar e ignorar a grande maioria dos assassinatos ocorridos no Estado. É a naturalização da violência nas regiões mais vulneráveis.

Foi o que aconteceu com João Eudes Rebouças Filho (foto), de 38 anos. Então membro do Conselho Regional dos Despachantes Documentalistas do Ceará (CRDDCE), Eudes foi vítima de homicídio.

Crime planejado e executado, segundo a Polícia Civil, pelos mesmos criminosos que protagonizaram o massacre do dia 27 de janeiro, que deixou 14 mortos e 18 feridos.

Conforme inquérito da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), quando o grupo matou o despachante do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE), sequer tinham se passado 24 horas desde a chacina. Ainda em liberdade, e sem o constrangimento da barbárie protagonizada na noite anterior, os criminosos reincidiram na ação impiedosa. Eudes, porém, foi executado por engano.

Sentenciado à morte pelo WhatsApp, o despachante foi confundido com um suposto desafeto da facção Guardiões do Estado (GDE), identificado no inquérito apenas como “Jean”. Na ocasião do crime, Eudes assistia a um jogo de futebol, em um barzinho, no bairro Jardim União. Foi quando um olheiro da facção comunicou ao grupo que “Jean” estava “dando bobeira no bar”. Eudes foi surpreendido, baleado e morto.

“Era uma pessoa tranquila, calma. Um amigo brincalhão e muito família. Saía sempre acompanhado da esposa, dos filhos, pedalava, tinha uma vida normal. Não havia nada que desabonasse a conduta dele. Era membro do conselho desde a sua fundação. Tinha uma conduta totalmente ilibada”, resumiu um dos membros da CRDDCE, que pediu para não ser identificado, em razão das circunstâncias da morte.

Os acertos para a execução de Eudes foram extraídos do celular de Ruan Dantas da Silva, 19, preso e indiciado como um dos autores materiais da chacina. Segundo o inquérito, Ruan seria membro de um subgrupo da GDE, identificado como “Os Quebra Coco – OQC”, cuja principal atribuição seria executar membros de facções rivais.

Foram várias as mensagens trocadas entre Ruan e pelo menos sete comparsas diferentes. Nelas, o grupo esquematiza a imediata execução de Eudes, tratado como Jean. No primeiro diálogo citado no inquérito, Ruan conversa com Francisco Kelson Ferreira do Nascimento, conhecido como Nove Milímetros ou Susto. “Ei, se inteira: o Jean, o Jean pilantra, né? Tá assistindo ao jogo do Fortaleza ali, de bobeira. Bora, bora matar, botar a balaclava e bora, bora matar esse bicho, bora, bora, cuida!”, convoca Ruan. Kelson, após confirmar a “camisa” do alvo, numa referência à facção rival, autoriza o ataque. “Vai! De moto, só na miúda”. Minutos depois, o crime foi concretizado. “Só na cara!”, comemorou Ruan.

Contudo, em seguida, os criminosos perceberam que haviam matado a pessoa errada. Antônio Lucas Alves Bezerra, o Cileudo, apontado com padrinho de facção de Ruan, advertiu o afilhado e disse conhecer a vítima. “O nome dele é seu Eudes. Eu conheço ele, até demais. É torcedor do Ceará, gente boa, ele. Num tinha envolvimento com nada, só com as coisas dele, com serviços dele, alguma coisa, cidadão tranquilo, lá do Henrique Jorge. É o seu Eudes!”.

Ruan também foi repreendido por Zaqueu Oliveira da Silva, o Pai ou H2O, pela execução errada e pela quantidade de conversas pelo WhatsApp. “Ei, macho. Ei, PH, vocês falam demais, Betim. Tem um áudio de vocês fazendo aí, mah… Falando. Ei, macho, ei, Beto, porque você não bota a língua de vocês dentro da boca. Ei, mah, quando vai fazer uma coisa, cara… Tu acha que é brincadeira aquilo que nós fizemos, cara? (sic)”, diz Zaqueu, em referência à chacina.

“Mas esse áudio aí, né, foi no grupo da gente, viu, padrinho? Foi no grupo da tropa”, justifica Ruan. “Não, cara, porque vocês não têm jeito não, cara. Num é pra falar não em nenhum canto, homi… Já basta aquela mancada, né, mah? O cara, mataram o cara aí (sic)”, completa Zaqueu, sobre a morte de Eudes.

O inquérito contém ainda conversas extraídas de cinco grupos de WhatsApp dos quais Ruan participava e foi excluído logo após ter o celular apreendido, em 30 de janeiro. Ruan, contudo, só foi capturado no dia 18 de abril, em Beberibe, durante abordagem da Polícia Militar.

Sobre Eudes, porém, nada havia sido dito. A morte do despachante não foi lamentada sequer nas redes sociais, muito por conta da forma violenta como o crime foi praticado. Que fique registrado, portanto: Eudes era inocente e foi morto de maneira covarde. Que a justiça seja levada aos seus algozes. E que a família possa enfrentar o luto de cabeça erguida.

O POVO

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